sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Sobre a vizinhança

Sobre a vizinhança
J.P.Guéron
Roedores, larvas e fungos. Umidade e pouca luz, ambiente perfeito para uma vida antagônica a nossa. Coitados de nós, tão frágeis e super dependentes de uma racionalidade vã. Por mais inóspito que possa nos parecer, é neste ambiente que mora ela, a protagonista desta crônica, não é bactéria, fungo, larva ou roedora, alias, ela até se assemelha a uma ratazana. Pois bem, acho que tal ambiente deve convergir com ela. A casa pode revelar aspectos do ser que nem ele tem plena consciência ou, pode também ocultar certos aspectos de seus habitantes. Mas geralmente a primeira opção é predominante.
Enfim, deixaremos as lengalengas da formalidade de lado. A mulher que divide parede comigo, ou seja, minha vizinha, é uma pessoa por demais intrigante, solitária, mal-humorada, mal-educada, rabugenta... Resumindo, aquela pessoa para qual o vulgar adjetivo “mal-comida” se encaixa com a mesma perfeição que a luva veste a mão.
Desde que voltei a viver no número 136 da Rua Itaipava que venho reparando nessa vizinha, alias, acho que as paredes deste prédio são extremamente finas, e por isso, nos momentos em que fico só reparo nos mais variados conflitos dos moradores ao redor. Existe um casal daqueles que passam o dia trocando “patadas”, ele se dedica a azucriná-la sempre que possível, enquanto ela, que permanece a maioria do tempo calada, se faz de vítima e reclama da vida que tem. Típico pacto neurótico. O ambiente que parece insuportável para muitos justamente é aquele que mantém o casal sob o mesmo teto. Por mais que ambos concordem em quão precária anda a relação, ela não muda.
Tem também uma menina que imagino que tenha por volta de vinte e poucos anos, penso numa menina já não mais muito jovem, porém, por demais infantil. Esta está sempre em crises de relacionamento, aos berros ao telefone. Ela começa a chorar, a ficar completamente histérica, o que acontece quase cem por cento das vazes durante as madrugadas. E durante seus chiliques sua mãe simplesmente grita, sem se quer se levantar da cama:
- Não quero ouvir mais nenhum berro! Será que você não tem mais respeito?! Já são três da manhã!
O que acho mais incrível nesta reação materna é a sua contradição, a mãe pede silêncio aos gritos! Deixando a filha ainda mais nervosa, passando ela a não mais discutir com ser amado, mas sim com a própria mãe, que supostamente tentava dormir. Ela questiona a filha, mas não consegue servir de exemplo. Um pedido de silêncio aos berros... Será que essa mãe bateria na filha caso ela agredisse uma coleguinha no colégio para ensinar a filha a não bater nos outros? Batizaria eu esta técnica de pedagogia da contradição, ou melhor, hipocrisia aplicada. Esta mãe talvez diria uma frase que sempre me incomodou e que me lembro até hoje a primeira vez que a ouvi, saída da boca de uma professora primária: “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Tal máxima deve estar estampada no reino da ética teórica, lugar onde existe uma ética somente na esfera das idéias, idéias as quais estão em constante contradição com a prática real. Opa! Acho que conheço tal reino...
Pois bem, voltemos a nossa ratazana. Ela é daquelas típicas moradoras moralistas ordinárias e hipócritas do reino da ética teórica. Tem uma estranha coceira no lado direito da cara, um daqueles tiques nervosos. Seu rosto foi consumido por um impetigo inflamado que ela tenta esconder com um esparadrapo, como se fosse possível. Eu sinto cheiro de fungo! Seu cachorro da raça York Shire apresenta a mesma patologia, típica de ambientes com a umidade elevada e de baixa iluminação. A casa dela tem dois tipos de “seres” pendurados na parede: traças e quadros. Estes são tantos que mau se pode ver a parede em si, que deve ter sido branca na década de 1980, ano em que ela saíra pra comprar o seu último cavalete. Diz a lenda que ela não saiu de casa desde então. Ah, já ia por me esquecer, já falara dos quadros e dos cavaletes sem introduzir o hobby da Ratazana: a pintura. Ela pinta visando pregar os quadros na parede, toda pintura que faz, pendura. E eu bem sei quando ele termina um quadro. Toc, toc, toc, toc na já mencionada fina parede, não sei como há sempre espaço para mais quadros. Teorizo que ela começou a sobrepô-los e, se o faz, já esta na quinta fileira. Tomara que um dia a parede se torne tão grossa que eu não consiga mais escutar a hora do Brasil no máximo volume de seu rádio, e ela faz isso só pra incomodar o porteiro. Ah, o porteiro... Como ela gostaria de dar para o Valdemir, mas como ele a rejeita, passou a ser seu pior inimigo, a pessoa que ela escolheu para passar seu tedioso tempo azucrinando.
Este é seu hábito que mais me incomoda, ela se ocupa de tempos em tempos em humilhar Valdemir, o porteiro. Em uma dessas ocasiões ela abriu sua porta já bastante empenada e berrou:
- Valdemir, você pensa que esta em casa? Acha que pode fazer o que bem entende por aqui? Pois está muito enganado, aqui você não passa de mero empregado! Você é realmente muito folgado. Pois trate de enfiar esses seus passarinhos no cu, pois desde oito horas da manha que escuto esse infernal piu, piu, piu!
Quanta falta de respeito... Eu ainda poupei vocês de algumas partes do discurso, pois poderiam acarreta náuseas. Como se um piu, piu, piu incomodasse mais que um toc, toc, toc. Mas o que mais me indigna nisso é a maneira como ela reclama ao porteiro e não os motivos. Isso me faz lembrar a mãe da histérica citada acima. Ah se o porteiro pudesse revidar sem correr o risco de demissão, que covardia a dela não, Valdemir não tem o que fazer se não abaixar a cabeça e resmungar algumas palavras de ódio. Guardar a raiva não faz bem para ninguém, creio que um dia ele não vai conseguir engolir tal humilhação e regurgitará tudo que tem ficado indigesto depois de tantas humilhações públicas no corredor do prédio. Coitado, se assim for, estará fadado a se retirar do prédio com sua mulher e filho, que cresceu no 136 da Rua Itaipava.

3 comentários:

  1. Adoro essa sua crônica, João! É linda! E tem profundidade, sensibilidade e...muito humor! Me pego rindo, em alguns momentos. Lindo texto. Parabéns!

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  2. Muito bom Dom João!!!
    Beijos da tia Maria

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  3. É a ambigüidade manifestando-se nas relações. A nossa humanidade não nos pede licença e nem nos bate a porta: ela é e entra.
    Clarice Lispector relata em “A paixão segundo GH” o encontro de uma mulher com uma barata... Ela diz: “...o erro básico de viver era ter nojo de uma barata.” Parece uma frase inocente, mas mergulhando pelo livro, a gente sabe, a gente vê. Trata-se de amar tudo: o que há de belo e limpo e; o que há de feio, sujo, desagradável. Amar o todo é o amor da realidade, da realidade inteira que contém, também, baratas – e ratos, raivas, barulhos – qualquer que seja a rua, a vida, o núcleo - não tem parede ou barreira que nos impeça de viver.
    O tom do texto tem a medida certa de incomodar e dar a leveza que ele precisa.
    Que lindo caminho você está fazendo com a sua arte.

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