quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Sou?

As palavras esvaziam o meu silêncio.
Cuspo esta gosma fétida em verbo,
raspo o sebo das américas latrinas
rumo ao auto-extermínio.
Me desfaço em colônias existenciais
para que meu coração não me acometa.
Para come-la de quatro enquanto há;
deglutir a terra primeira do ser
sem enunciados nem justificações...
Me incomodar sem algum motivo,
convencê-los com nenhum argumento.
Quero coroar Rei o meu silêncio,
o meu sentido mudo de mundo,
ser potente que se esvai desassumindo...

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

ALGUMA COISA

Vivo a vida no imperativo
com um hiperativo que me resseca;
que me fala; que me cala e fala de novo
num tal de ter quê querer, ter quê fazer:
num tal de ter quê.

Me desapresento e tenho fome, vício
e um desejo que é necessário:
necessito dessas desnecessidades.
Já me faltam faltas a querer,
estou cheio de nada que me represente,
estou cheio de coisa qualquer...

Quero matar-me de satisfação
para aniquilar minha vontade de ser
e acabar com essa secreta angústia
que cuspo em teoremas do nada;
poesias pálidas e ocas; fast foods literários...

Minha poética é necessidade
e sua maior riqueza é significar o vazio,
provar do gesso cru, fazer sentido de modo qualquer.
Ela é o tanto que me faz nenhum,
o que na falta me preenche de nada.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

SÚPLICA A SÃO JOÃO

Meu São João,
querido santo ambulante,
mas que demanda é essa
de deixar o outro falar?
Esse tal outro múltiplo que me trai
em desdicções sem compromisso,
por favor, meu santo, me escute:
que tenho eu com isso?..
Te peço arrego e aconchego.
Tropeço, só um ou outro
que é pra ninguém nos desconfiar.

Ai, meu São Joãozinho...
Não mais quero esse tal
que não me para de querer,
não cessa de me desejar
serpenteando pelas minhas costas
como quem pretende apunhalar.

Por favor, santinho meu,
se sou eu meu traidor,
posso até de ser me deixar, sei lá,
meu santo, só te suplico para deste fantasma me libertar...

Podes me chamar do que quiser:
medroso, recalcado, preguiçoso, ou até zé mané...
Um eu não meu é que não quero
a tornar intranqüilos meus sonhos,
meu sono, o meu ser de cardamomo .

Que venha minha morte parcial!
Assim talvez me veja eu livre
do tal erva - daninha que, por vacilo,
deixei que me invadisse o corpo
de umidade secreta e fluida...

sábado, 16 de outubro de 2010

SEM

Fumo a história enrolada em sentidos:
me alucina o perfume de magnólia
que flui pelo entreaberto da calma.

Fui-me indo despercebendo tudo
na velocidade que fazia lá fora.
Fui-me vendo por dentro
perambulando nu a cortar o vento.
Sem romance, sentido de século, sem eco.
Fui-me desfazendo em esquecimento...

Que letra é essa que me diz silêncio?

Quem é o silêncio que me grita a carne?

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

POEMA & POESIA

Outro dia minha avó me fez de avô cuspindo a seguinte interrogação:

- Meu neto, qualé a diferença da poesia pro poema?

Tirando de poeta, respondi:

- A poesia, vó, é a noiva de véu que sempre hesita pro poema poder continuar... Continuar esperando... Continuar buscando palavras, sejam elas florais ou minerais, para entregar à poesia. O poema e a poesia se completam na sua falta, na sua incompletude. Da angústia do poema se alimenta o encanto da poesia. Deste desencontro se nutri e se locomove minha poética.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

PELO TEMPO CRUZADO

Passei foi tempo a descriar palavras
só pra desgarrar do vício.

Foi o tempo quem me passou omisso...

De longe sopraram as horas
deixando só impresentes...
Presente de pacote vazio
do cio seco da fome... (Da falta.)

Escorrego por sonhos sem face nem forma:
uma lembrancinha que seja não me resta ao amanhecer.
Meu embrulho oco se enche do outro,
alço-me em eus inventados
sob o vergonhoso orgulho de nada ser.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

MAIS UM TRAGO

Mudo mundo sujismundo –
Eu mudo o mundo...
Ronco mundo; tronco mudo.
Troco tudo por mais um pouco...
Por mais um pouco deste mundo
cru, suado e imundo,
mais um pouco de traças
e atraso. Só mais um passo.
Só mais um descompasso.

Mais um pouco e eu me casso
e não suplico mais.
Só mais um trago desse cigarro,
um abraço apertado
largado à beira do cinzeiro.

Me suporto nessa boca de bueiro
de quem faz verso sentado de pernas pro ar,
de quem simpatiza os santos mancos
e os deuses coxos da margem esquerda.

Mais um troco fotografado,
mais um Fado, um escarro, um retardo.
Só mais uma canção-retrato,
Só mais um ato...

quinta-feira, 22 de julho de 2010

sem palavras

e quando o sangue seca
as lágrimas ressoam até o ressequido
desse nada, atentado ao devir...

não cabem palavras para suportar,
elas não sustentam o peso do nada
enquanto pairamos entre soluços engasgados...

forte é o silêncio que não se permite calar.
é, o silêncio grita quando chega o fim,
quando chega o tudo,
quando de frente para o nada
a vida se cumpre sem metas.

sábado, 3 de julho de 2010

SÓ ISSO

Acordar de olheiras mal-dormidas;
pisar com os pés frios o duro chão;
sentir a luz queimar nas retinas
ao despertar mais uma vez para tudo isso...

Não o que foi, é ou será,
mas isso que está:
tudo isso que é de (algum) novo jeito.

Demovo tudo e me contento só.
Só com isso que está sem, simples.
Satisfaço-me na falta de...
e faço disso meu gozo diário,
meu santíssimo “pecado solitário”.

Não desejo vôos mirabolantes,
pessoas importantes ou carros turbinados.
Quero só poesia num dia-a-dia
que componho a pés descalços
baseado na falta dura de tê-los presos ao chão.
Quero só nada – saúde e risada.
Só com isso me contento...
Omisso? Nada...

sábado, 12 de junho de 2010

GOTA DE GRITO ABAFADO

Minhas palavras são lágrimas de papel.
Já até paguei pela liberdade,
mas não me adiantou nada.
Me esqueci como suposto civilizado...

Minha poética está de cuspe na lata,
poética chula e vulgarizada,
retardada de confusão – boa? Que nada!
Não mais brinco, brigo com as palavras.

Entravo-me em disformia crônica,
disfonia atônita: escrevo já rasurado.
Engasgo, não consigo engolir ou cuspir.

Sigo todo dolorido de anti-planos.
Baseado em coito interrompido
vou me arrastando para não sei onde...

sábado, 29 de maio de 2010

O OUTRO

O outro é meu limite,
barreira meta e física
preservada a látex lubrificado.
O outro é o meu agite,
meu certo, meu errado.
Um eu não meu
que some sem dizer adeus. Interpreto...
O outro é imagem, campo, figura e fundo.
Um outro mesmo mundo
entrecruzado que me limita e me completa...
Que me abraça e sente de forma diferente,
é mistério...
O mal-bem-estar
que me faz vestido, inibido e repleto,
monogâmico, careta e secreto...
O outro me dá sentido,
me espalha e me faz espelho.
O outro é companhia para a solidão,
sol nas frias noites, coito. Fricção...
Pode ser parte minha, dele mesmo,
pura imaginação ou mero engano da visão.
O outro é parâmetro, lei e competição,
norma que estabelece o desvio padrão.
O outro é abismo ou outra coisa qualquer:
homem, criança, mulher...
Pulsão com direção.
Eu sou o meu outro.

domingo, 23 de maio de 2010

PRÉ-FABRICADO

Tudo que conto já vem pré-montado
de fonemas de tempos atrás...
Quando dei conta já me tinham inventado,
mal nasci fui entregue à carolice tenaz.

Nem sofrer precisei para me reinventar:
da vida voltei meio cheio de nada,
sob o braço uma identidade pré-fabricada
hermeticamente embalada e com modo de usar.

É nisso que dá chegar tão atrasado,
já de direção apontada e tudo mais...
Não me contento de carona neste style pasteurizado
abarrotado de tantos diferentes iguais...

sexta-feira, 21 de maio de 2010

DYSPHONÍA

(...





...)
As palavras
não me dão conta...

sábado, 15 de maio de 2010

CARTA

Coração,
Vê se não pára
Só pramanhã poder bater mais forte
(seria baita falta de sorte!)
Faz sei lá...
Que nem a chuva
Que trata de nunca chover de uma só
Pra não afogar quem tá de baixo...
Trate de nunca me sair pela goela
E vê se fica na tua falando baixinho
Pois não me agrada esse tu falastrão.
Coração, coração,
Já providenciaras aqueles acertos,
Andas cumprindo sua função?
E aquela goteira do átrio esquerdo
Ainda goteja quer queira quer não?
Ah mas sim, te agradeço e a toda tua fisiologia...
Mas será que poderias cavalgar com maior destreza?
Sim, eu sei que é da tua natureza, mas
Por favor, fique em paz por esses dias...
Deixa-me dormir quando há noite,
Permita-me sonhar sem resposta ansiar.
Fique em paz coração...
Deixe umas também pra depois
E vê se fica quietinho descansando,
(Como me cansa esse bumbo sem norte!)

sábado, 8 de maio de 2010

ACIDENTE

Rasgaram meu circuito da eternidade
e desencaparam-me os fios do nada,
desse curto acidente fui empurrado
sem nem passaporte pra carimbar a entrada.

Não sei não,
acho que cismaram comigo...
Logo eu que estava lá
muito bem,obrigado,
pairando pelo infinito...

Mãe, Pai, por que me evocaram
pra curtir nessa realidade?
Logo eu que estava sem prazo de validade!

Comecei de puro iniciante,
de todas as vidas fui primeiro
desse eu meio torto, errante...

Eu que era nada inventei só uma metade
repetida e estofada de esquecimento.
Era aquele tudo que a escolha apagou
quando passeava de braços dados com o tempo...

Mas tudo bem. Já que estou por aqui
me deixo curtir no frasco perecível do verbo
para destilar da minha inodora essência
alguma coisa meio perfumada... (pontuada.)

sexta-feira, 30 de abril de 2010

INSPIRAÇÃO

Inspiração é enxergar no escuro,
é a vida em poesia - cega fotografia.
Inspiração é enxergar o belo
no caminho de todo dia.
É um sentido além dos sentidos
que só se abre quando Deus sabe.

A inspiração não está no mundo
sem que nele eu também esteja.
Ela é o que às vezes enxergo
no que há de não visto.

Sem inspiração os mais maravilhosos
lábios não passariam de lábios.
Auroras não passariam de sóis subindo
e crepúsculos de sóis descendo.
Sem inspiração a lua plena que me ilumina
durante a noite seria apenas um satélite...

Inspiração é aquilo que negam
os poetas por respeito ao mistério.
É aquele sorriso que brota do sério,
uma lágrima defenestrada da fachada
com a janela fechada.

Inspiração é descobrir sem sair da rotina,
é ser criança de já crescido.
Felicidade é o sacolejar da alma perante o desconhecido...

quarta-feira, 21 de abril de 2010

ES(COLHAS)TRELAS

Apago as luzes da casa
forjando um breu campestre
para ver esse mar estrelado
quando a Lua desaparece.

Com tudo aceso vejo tudo,
terrível sensação de ver nada.

Por isso escolho, apago e ofusco
para melhor brilhar a estrela incendiada.

Apago as luzes da casa,
deleito-me nas noites estreladas...
Quais serão as que brilham em mim?
Existem certas ou erradas?

terça-feira, 13 de abril de 2010

SER SEM SENTIDO

Queria ser como Caeiro
que só sente sem dar sentido,
que não pensa no mundo,
mas que é o mundo.

Queria ser nada além
do que sou...

Queria ser um som sem tom,
cores sem matizes, sabores sem paladar.
Ser sem sentido, sem direção,
ser, simplesmente estar no mundo.

Queria ser para mim,
nem pra dentro nem pra fora,
indivisível e inclassificável.
Queria ser um ser impensável.

Mas o que será ser sem sentido?
Um conteúdo sem signo,
um homem sem eu?
Criança?
Animal?
Planta?
Quem seria eu?...

segunda-feira, 12 de abril de 2010

AMORES

Amizade amiúde amniótica,
Amontoar amontoado,
Amor.
Amor à primeira vista,
Amor caridade, amor carnal - amor físico.
Amor platônico de mil amores.
Fazer amor pelo amor de Deus
Por amor à arte.
Pelo amor de...
Um amor. Um amor de amora amorada,
Amor-agarradinho amoral.
Amor-perfeito-bravo-da-china-do-mato
Amor-próprio.
Amorreado amor-seco
Amor errado amortecido,
Amores.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

ADEUS

Nasceu casto e destemido
o lactante bendito pelo seio ansiando.
Sugou, mamou e golfou de satisfação,
aprendendo o que é bom foi já bem cedinho.

Cresceu, cresceu, não parou de crescer,
já era quase um homem o menino que fora bebê,
aprendeu a temer, com muito medo viveu,
mas era mais ele, era ele por ele,

era homem safo que de chorar se esqueceu
quando deparado com a teta, fria e inerte,
que o alimentara algum dia.

Velas, rezas, não entendia o que se passava.
O homem safo virou menino sem nada,
e dele por ele era só fantasia,
era por aquela mulher que no caixote jazia.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

NO SENTIDO DA BUSCA

Álbuns incompletos
de eus sem limites.
Inteiros partidos
de lacunas repletos.

Assim está bom,
existindo em aberto.
Que graça teria
ser eu já completo?

Boa é a procura
que infinitamente dura.
Às vezes acho que acho,
mas a busca perdura.

Busco no amor,
na fé e na arte.
Pulsão que me mantém vivo
procurando por toda parte.
(J.P.Guéron)

quinta-feira, 25 de março de 2010

LIQUIDEZ

Num agonizante corre-corre
por centenas de afazeres
me esqueço da flor que morre,
passo os olhos, efêmeros prazeres.

Tudo passa num frenético vendaval.
Livros, leio partes de muitos de uma só vez
tropeço fugindo do temporal,
morro de angústia, contemporânea liquidez.

Hoje parei, freei de exaustão,
improdutivo e culpado debrucei na janela:
são só corpos que correm forjando lucidez.

Não quero mais tudo de uma só vez,
vou fazer o meu tempo em contratempo
sem cortar pelo Canal de Suez.

segunda-feira, 22 de março de 2010

LIBERDADE ?

Nas mãos já não temos a corda
que os nossos gargalos envolve.
Pelos ralos o sangue inda escorre,
é Narciso tomando outro golpe.

Catatônicos de tantas escolhas
forjadas pela tal Liberdade
já não escolho o que quero,
já não acredito em verdades.

Largaram de mão esse fio
deixando tudo meio misturado,
até o Papa está enganado!

À deriva neste navio
não obedecem mais os criados,
mataram Deus e o conservaram empalhado.

quinta-feira, 11 de março de 2010

INTERMÉDIO

Estou cheio de vazios,
lacunas de esperas infinitas,
cheio de achados perdidos
escorrendo pelos entre dedos.

É a vida que morre,
o rio que corre,
a pedra que fura.
Nada no meu mundo dura.

Estou cheio de nada
neste intermédio sem eixo,
me encontro num desencontro
quase desacreditado...
(J.P.Guéron)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

VIVO MORRENDO...

Vivo um tanto e mais um pouco
morrendo um quanto a cada instante.
Vivo morrendo de dores
de amores sempre distantes.

Morro dia após dia porque vivo.
Vivo porque ainda não estou morto.

Arranco a casca da vida com os dentes
com o intuito de saborear a poupa.
Rasgo toda a roupa,
mas nunca alcanço a semente.

Adoeço de amores efêmeros,
jamais encontrei um remédio,
vivo uma única certeza:
nesta vida não morrerei de tédio.
(J.P.Guéron)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

URGENTE

Calma, João,
deixa a roda rodar
deixa a vida viver
deixa o verde encorpar...
Não vá afobado
saborear essa insípida carne.

Enquanto o sumo
fermenta com o tempo
eu com ele me desentendo.
Meu maduro apodrece,
minha pétala mais bela
vacila ao desabrochar.

Calma, menino,
você ainda é João
achando ser Drummond.
Deixa a roda rodar,
deixa o verde encorpar,
deixa a vida viver...
(J.P.Guéron)

sábado, 13 de fevereiro de 2010

SEGREDO

Gosto de te falar,
arrombar pra ti.
Regurgitar tudo
tim-tim por tim-tim.

Falar de verdade,
abrir meu peito
sem muita piedade
pra deixar sangrar direito.

Mas assim não acerto,
não só não agüentas
como abandonas o trajeto.
Então, trato de bem esconder
meu belo tesouro secreto.

Pois é. Se tudo te entrego,
como quem pula pra nunca voltar,
agonizo como um toco oco
que se deixa consumar.
E tudo que pulsara algum dia,
depois desse asno orgasmo
lentamente se esfria.
(JPGuéron)

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

E NÃO PARA DE VENTAR... (OU “ME ORGULHO POR SER HOMEM”)

Tecnologia:
coisa fria
que é fácil pros netos
e difícil pra tia.

Argumento:
coisa pra filósofo,
advogado e louco,
correndo atrás duma verdade
que inventamos aos poucos.

Vento:
Aquele que passa
recusa a cachaça
não procura não deprime
e muito menos acha graça.

Não sabe a verdade
e, na verdade
não tem argumento
nem um pingo de vaidade.
Nunca se pergunta:
O que é o vento?

Orgulho:
Por isso me orgulho,
sou homem e mergulho.
Não como o vento,
brisa fria
que se esvai sem lamento,
quando vê já se foi,
não para pra dizer adeus,
“nem um oi!”

Sou homem e mergulho,
me chafurdo no meu orgulho
pois invento!

Invento lamento
tecnologia e argumento,
invento verdades
e até sentimentos.
Sou homem e posso parar,
ao contrário do vento
que prometera nunca,
jamais se apaixonar.

(J.P.Guéron)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O MANTO

Acontece, caro amigo,
que poesia é arte
e não confissão ,
onde tudo é verdade.

É arte mais verdadeira
não por despir-se insanamente,
e sim, porque mente
sem dó nem piedade
dissimulando o que fora realidade.

A poesia é permissiva
e os carnavais também,
neles vestimos falsos mantos,
fingimos que zero é cem.

Aqui tudo podemos supor.
Nos permitimos fantasiar,
imitar, enrustir ou exaltar,
e até por inteligentes
nos fazemos passar.
(J.P.Guéron)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

FUTURO PRESENTE

O que tem a vida me dar
além de um futuro como presente?

Nada... Nada além...

Mas também não quero nada,
nada mais além de tudo isso.
Nada demais ou de menos, nada disso.

Quero simplesmente acordar:
carne sobre carne,
pés sobre o chão
numa unidade múltipla
na qual já não se diferem ser e ente.
...e me deliciar... pois, agora,
o futuro se torna presente.

(J.P.Guéron)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

PROZAC

Me doparam,
de tudo, só sinto nada.
Antes ia do choro, chorando,
até conquistar a risada...
Mas agora... Nada.

Outrora eu gritava,
agora não sei mais porque.
Eu até chorava,
agora nem mais por você.

Me sinto assim:
desbotado, desalmado,
desanimado... cru.
Sem culpa e sem sexo,
frigidamente nu.

Melhor é chorar,
afogar-se em prantos,
do que rastejar anestesiado
se apoiando em insípidos cantos .

É isso, quero sentir,
nem que seja a mais cortante
das dores humanas,
não quero nem mais um Prozac,
triste felicidade comprimida em miligramas.
(J.P.Guéron)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

SONETO PARA UM POETA AFOGADO

O poeta se entrega,
se nega e se contradiz,
ele é quem torna donzela
a mais lúgubre meretriz.

Ele é aquele que se trai,
que se desenterra, se diz,
enternecendo frios farrapos
com suas efêmeras metáforas-mis.

Nele, o que fora adorno torna-se raiz
quando empacotadas em sonetos-canções
as mais vis orações.

E assim, de uma forma disforme
conforme nenhuma outra norma,
se atira pro fundo sem titubear.
(J.P.Guéron)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

POEMA METEOROLÓGICO

Um dia pesado.
Luz e sombra numa fusão delirante,
acinzentou o que fora dourado.
- Vai chover, vai chover!
E o seco se torna molhado.
Da janela, as nuvens aglomerando
apertam-se contra o Corcovado.
E o sol amarela de vez,
pra festa da chuva não foi convidado.

Uma tarde ardente de verão.
E o calor exaure o dia,
até que chega a chuva de supetão,
é água que encharca e alivia.
- Venha senhora chuva, venha
como bandeira, andrade ou cecília,
dissolver o bruto dessa ardente agonia.
Já posso dizer que chove lá fora,
e daquela enxurrada de dor, fez-se a mais bela poesia.

sábado, 23 de janeiro de 2010

RESPOSTA À ESPERANÇA

Fácil é ter esperança
naquele sonho passivo
que vislumbra mudança.
Aqui navegam contemplativos
os mais inofensivos ascetas.
Esperando o evento celeste
que ainda há de exterminar
tudo que é fome, guerra e peste

Deleito-me com quem avança
sem muito esperar,
com a determinação de uma lança
ao perfurar o ar.
Não falo dos céticos,
descrentes cretinos,
com seu mundo sintético
onde sonhar é coisa de menino.

Haitianos têm esperança,
ela não morreu soterrada.
Sofrem os negros caribenhos,
tiveram sua estrutura abalada.
E no piso que era firme
não se firma mais nada.
Fácil é ter esperança,
eles é que não podem esperar...
(J.P.Guéron)

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

VINHO SANGUE

Vinho tinto que
transborda o cálice
e borra sem culpa.
Suspendem-se as pálpebras
quando vultoso falo
deflora a vulva.
Um rito de passagem,
de entrada e de saída,
sublime ritual da vida.
(J.P.Guéron)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

DEBRUÇO

Eu Luto.
Lato pelo vivo
e calo pelo luto.

Astuto,
me debruço,
embruteço e vivo o luto.

Vivo grego
Viva o vinho!
Viva ela que se entrega de bruços.

Enquanto outros estão enrustindo,
encadeando suas janelas
fingindo não estar sentindo,
ainda me sinto por elas.

Não quero renegar o sentido
como uma dose de anestesia geral
e na feira comprar um sorriso, pois,
por aqui, é proibido se sentir mal.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

“Désolé”

E se passa mais um agora.
Não espere o tique taque
“Vem, vãobora!”
Que angústia, que demora.
“Não por mais uma hora!”

Então vem a segunda,
fingimos que nada nos assola
enquanto o Nada, aflora.
Nada fruto, Nada flui.
Nada chora.

Fecho os olhos e nada de novo,
Nada agora, nado por mais uma hora...
Espero lamento, espero momento.
espero que role.

E o Nada se desembola...

Há um estalo no ralo,
um movimento de vento:
é marola que rola.
Só um passo e o Nada passa:
É ela que entra de sola,
é ela quem entra e desola.

domingo, 17 de janeiro de 2010

DOCILUSÃO
Chego ao alto do mar
E no fundo do céu,
No cume do mundo.
Até nas estrelas consigo encostar
E o perfume da flor
Quando se espalha no ar
M’ embriaga de vez
E m’inunda de angustia, pois,
Em ti, não consigo tocar.
Fantasia, romance, é tudo ilusão.
Assim pensam os velhos
E seu sábio coração ancião,
Que muito cansado de por aqui sofrer
Prefere não crer que,
Pelos mundos da rua ainda exista paixão.
Petrificado coração navegante da seca,
Não procura mais não, pois,
Sem a ilusão do mar
Coração algum pode navegar.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Sonhos de-verão

E o sol quente lá fora
Enquanto aqui dentro, ela mora.
Vem o dia, mas vai logo embora,
Se esvai sem demora.

E o sol quente lá fora..

Mas você não me larga
Me agarra sem hora - Ora bola!
- Será que realmente está?
Que é concreto-matéria, tijolo e cimento
Mas não, o cheiro que sinto
que faz tudo tão produto-bruto
É só mais um fruto, do meu coração

E o sol quente lá fora...
E eu prisioneiro.
Não tem sol, não tem mar,
Me satisfaz o seu cheiro
Perfume que não está, odor que faz sonhar.

Não digo que não vem, pois vem.
Mas vai logo embora,
Como um dia de inverno.
E o sol quente lá fora?

Meu a-mar é extremo
Pode-se dizer: polar
Mas tu não deixas o equador
Preferes a mediocridade para te amornar,
pois temes o frio e repetes a máxima:
“Pés no chão para nunca sangrar!”
-Vamos lá, vamos lá.
embarque comigo para o alto do mar!
(J.P.Guéron)

sábado, 9 de janeiro de 2010

Fragmentos do conto “UMA PEQUENA MULHER” – Franz Kafka(1883-1924)

"Fico mais tranquilo em relação ao assunto quando creio perceber que uma decisão, por mais próxima que às vezes pareça estar, na verdade não virá; há uma certa inclinação, em especial na juventude, a supervalorizar o momento em que as decisões aparecem;(...)
(...)
Assim, de qualquer ângulo que eu examine o caso, resulta sempre a convicção de que, se eu esconder esse assunto sem importância com a mão, mesmo de leve, poderei seguir o curso normal da minha vida ainda por muito tempo sem que o mundo me importune, apesar dos surtos da mulher."

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Sobre a vizinhança

Sobre a vizinhança
J.P.Guéron
Roedores, larvas e fungos. Umidade e pouca luz, ambiente perfeito para uma vida antagônica a nossa. Coitados de nós, tão frágeis e super dependentes de uma racionalidade vã. Por mais inóspito que possa nos parecer, é neste ambiente que mora ela, a protagonista desta crônica, não é bactéria, fungo, larva ou roedora, alias, ela até se assemelha a uma ratazana. Pois bem, acho que tal ambiente deve convergir com ela. A casa pode revelar aspectos do ser que nem ele tem plena consciência ou, pode também ocultar certos aspectos de seus habitantes. Mas geralmente a primeira opção é predominante.
Enfim, deixaremos as lengalengas da formalidade de lado. A mulher que divide parede comigo, ou seja, minha vizinha, é uma pessoa por demais intrigante, solitária, mal-humorada, mal-educada, rabugenta... Resumindo, aquela pessoa para qual o vulgar adjetivo “mal-comida” se encaixa com a mesma perfeição que a luva veste a mão.
Desde que voltei a viver no número 136 da Rua Itaipava que venho reparando nessa vizinha, alias, acho que as paredes deste prédio são extremamente finas, e por isso, nos momentos em que fico só reparo nos mais variados conflitos dos moradores ao redor. Existe um casal daqueles que passam o dia trocando “patadas”, ele se dedica a azucriná-la sempre que possível, enquanto ela, que permanece a maioria do tempo calada, se faz de vítima e reclama da vida que tem. Típico pacto neurótico. O ambiente que parece insuportável para muitos justamente é aquele que mantém o casal sob o mesmo teto. Por mais que ambos concordem em quão precária anda a relação, ela não muda.
Tem também uma menina que imagino que tenha por volta de vinte e poucos anos, penso numa menina já não mais muito jovem, porém, por demais infantil. Esta está sempre em crises de relacionamento, aos berros ao telefone. Ela começa a chorar, a ficar completamente histérica, o que acontece quase cem por cento das vazes durante as madrugadas. E durante seus chiliques sua mãe simplesmente grita, sem se quer se levantar da cama:
- Não quero ouvir mais nenhum berro! Será que você não tem mais respeito?! Já são três da manhã!
O que acho mais incrível nesta reação materna é a sua contradição, a mãe pede silêncio aos gritos! Deixando a filha ainda mais nervosa, passando ela a não mais discutir com ser amado, mas sim com a própria mãe, que supostamente tentava dormir. Ela questiona a filha, mas não consegue servir de exemplo. Um pedido de silêncio aos berros... Será que essa mãe bateria na filha caso ela agredisse uma coleguinha no colégio para ensinar a filha a não bater nos outros? Batizaria eu esta técnica de pedagogia da contradição, ou melhor, hipocrisia aplicada. Esta mãe talvez diria uma frase que sempre me incomodou e que me lembro até hoje a primeira vez que a ouvi, saída da boca de uma professora primária: “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Tal máxima deve estar estampada no reino da ética teórica, lugar onde existe uma ética somente na esfera das idéias, idéias as quais estão em constante contradição com a prática real. Opa! Acho que conheço tal reino...
Pois bem, voltemos a nossa ratazana. Ela é daquelas típicas moradoras moralistas ordinárias e hipócritas do reino da ética teórica. Tem uma estranha coceira no lado direito da cara, um daqueles tiques nervosos. Seu rosto foi consumido por um impetigo inflamado que ela tenta esconder com um esparadrapo, como se fosse possível. Eu sinto cheiro de fungo! Seu cachorro da raça York Shire apresenta a mesma patologia, típica de ambientes com a umidade elevada e de baixa iluminação. A casa dela tem dois tipos de “seres” pendurados na parede: traças e quadros. Estes são tantos que mau se pode ver a parede em si, que deve ter sido branca na década de 1980, ano em que ela saíra pra comprar o seu último cavalete. Diz a lenda que ela não saiu de casa desde então. Ah, já ia por me esquecer, já falara dos quadros e dos cavaletes sem introduzir o hobby da Ratazana: a pintura. Ela pinta visando pregar os quadros na parede, toda pintura que faz, pendura. E eu bem sei quando ele termina um quadro. Toc, toc, toc, toc na já mencionada fina parede, não sei como há sempre espaço para mais quadros. Teorizo que ela começou a sobrepô-los e, se o faz, já esta na quinta fileira. Tomara que um dia a parede se torne tão grossa que eu não consiga mais escutar a hora do Brasil no máximo volume de seu rádio, e ela faz isso só pra incomodar o porteiro. Ah, o porteiro... Como ela gostaria de dar para o Valdemir, mas como ele a rejeita, passou a ser seu pior inimigo, a pessoa que ela escolheu para passar seu tedioso tempo azucrinando.
Este é seu hábito que mais me incomoda, ela se ocupa de tempos em tempos em humilhar Valdemir, o porteiro. Em uma dessas ocasiões ela abriu sua porta já bastante empenada e berrou:
- Valdemir, você pensa que esta em casa? Acha que pode fazer o que bem entende por aqui? Pois está muito enganado, aqui você não passa de mero empregado! Você é realmente muito folgado. Pois trate de enfiar esses seus passarinhos no cu, pois desde oito horas da manha que escuto esse infernal piu, piu, piu!
Quanta falta de respeito... Eu ainda poupei vocês de algumas partes do discurso, pois poderiam acarreta náuseas. Como se um piu, piu, piu incomodasse mais que um toc, toc, toc. Mas o que mais me indigna nisso é a maneira como ela reclama ao porteiro e não os motivos. Isso me faz lembrar a mãe da histérica citada acima. Ah se o porteiro pudesse revidar sem correr o risco de demissão, que covardia a dela não, Valdemir não tem o que fazer se não abaixar a cabeça e resmungar algumas palavras de ódio. Guardar a raiva não faz bem para ninguém, creio que um dia ele não vai conseguir engolir tal humilhação e regurgitará tudo que tem ficado indigesto depois de tantas humilhações públicas no corredor do prédio. Coitado, se assim for, estará fadado a se retirar do prédio com sua mulher e filho, que cresceu no 136 da Rua Itaipava.

Para abrir com chave de ouro

Coração Vagabundo (Caetano Veloso)

Meu coração não se cansa
de ter esperança
de um dia ser tudo o que quer.
Meu coração de criança
não é só a lembrança
de um vulto feliz de mulher
que passou por meus sonhos sem dizer adeus
e fez dos olhos meus
um chorar mais sem fim.
Meu coração vagabundo
quer guardar o mundo
em mim.